DIA 0.5 - Para matar a vontade e a ansiedade
Saint-Jean-Pied-de-Port a Hunto. 6 km. 16h às 17h30.
Quando digo que fiz o Caminho de Santiago de Compostela, caminhando sem parar durante cinco semanas, a maioria das pessoas me pergunta quantos quilômetros e quantas horas eu caminhava por dia. Essas informações (números aproximados) estarão disponíveis no início de cada postagem. Na verdade, os números variaram bastante, de acordo com o dia, a distância até a próxima cidade com albergue, o clima, e é claro, a disposição de continuar ou não caminhando.
Com relação aos horários, outros dois pontos relevantes são:
- a época do ano na qual se realiza a caminhada.
- o SENTIR.
Uma das melhores coisas que o caminho pode proporcionar é VIVER O PRESENTE. O presente é AGORA. É sentir, se sentir, ouvir a intuição e fluir com o Caminho. É assumir “hoje não dá mais, ficarei por aqui”. Ou então “ainda tenho muita energia e vontade de caminhar, vou adiante!”. Sem ficar preso ou limitado a albergues pré-reservados ou outras obrigações. Só que claro, é muito importante estar informado e ciente de como é o Caminho pela frente, por exemplo: distância até o próximo albergue, horário, zonas de risco (montanhas), se o próximo albergue está aberto (no inverno) ou se existe um trecho grande sem disponibilidade de água ou alimento.
No verão, por exemplo, o número de pessoas que caminha é muito maior, então existe um risco de ficar sem vaga nos albergues em algumas cidades, caso você resolva caminhar até mais tarde. Não são todas as pessoas que encontram problemas, mas é importante estar ciente que isso pode acontecer. Seu dia-a-dia no Caminho e a sua intuição serão os seus melhores guias na tomada de decisões.
Considerei esse dia como 0.5 porque foi um ‘meio dia’ mesmo. Uma caminhada só pra matar a vontade e a ansiedade de começar. Descendo na estação de trem era possível ver outros peregrinos arrumando suas mochilas, colocando suas capas para enfrentar, já no começo, a primeira chuva.
Peregrinos na estação de trem em Saint-Jean-Pied-Port. Foto: Stefan Fischer.
A maioria deles estava indo para o mesmo local que a gente (rue de la Citadele, 27), para fazermos a nossa CREDENCIAL DO PEREGRINO. Nessa credencial, também chamada de passaporte, você recebe carimbos que comprovam sua passada/estadia em cada cidade. As carimbadas são distribuídas em albergues, igrejas e alguns bares. A credencial também é o que lhe dá direito a se hospedar nos albergues municipais. No final, é o que garante que você receberá a Compostela (certificado que diz que você fez o Caminho).
Credencial do Peregrino carimbada
Além disso recebemos uma lista com a maioria dos albergues, as distâncias entre eles, a época do ano em que estão abertos e os recursos disponíveis na cidade (banco, mercado...). Super útil, apesar de eu não ter precisado uma única vez. Ganhamos também uma outra folha, indicando as altitudes, distâncias entre principais cidades e uma sugestão de ‘etapas’ ou dias para fazer o caminho.
Por exemplo, no dia 01, quando se cruza a Serra dos Pirineus, se chega a uma altura superior a 1400 metros. Com essas informações era possível ter uma idéia se o dia exigiria mais do corpo ou não.
Nesse lugar onde fizemos a credencial, a senhora que nos atendeu nos indicou o local aonde poderíamos pegar a nossa concha. Concha? Que concha?? Percebi que o alemão sabia do que se tratava. Com vergonha, me fiz de entendida: ‘ah claro, a concha!’. Escolhi a minha e amarrei na mochila. É, eu nem sequer sabia que os peregrinos usavam uma concha (e agora estou em dúvida se eu sabia que a concha era um símbolo do Caminho de Santiago ou não). A Concha de Vieira. Existem várias explicações sobre o porquê de ela ser o símbolo do caminho. Na minha opinião, a que mais faz sentido é essa: os peregrinos que regressavam de Finisterra – ponto mais a oeste da Europa, que antigamente era considerado o fim do mundo – mostravam aos seus familiares e amigos a concha como prova ou símbolo de que fizeram a peregrinação até Compostela. Para mim, é um símbolo que representa a vida, que é uma jornada assim como o Caminho. Ligado à Deusa Vênus, também representa o renascimento de uma pessoa, e todas as mudanças que ocorrem com o peregrino.
Depois de fazer a credencial e amarrar a concha na mochila, capas de chuva e pé na estrada. Na verdade, ficamos em dúvida entre começar já ou esperar para o dia seguinte. Vamos caminhar, azar! Tá, mas para onde caminhamos? Como saber qual é o caminho a seguir?
O caminho é todo sinalizado por setas de cor amarela desenhadas no chão, em muros, pedras, postes, árvores, marcos de concreto. Além das setas, adivinhe o que mais pode aparecer como sinalização? A tal da concha!
Stefan e eu éramos os únicos peregrinos naquela chuva, começando a caminhar às 16h. Tenho que admitir que a chuva é um grande desafio para mim. Caminhar com tudo molhado(ando), e saber que talvez nada iria secar durante a noite costumava me deixar bastante desconfortável. Apesar disso, eu estava me sentindo super bem. Afinal, não havia o que fazer, somente aceitar que estava chovendo. Ficar reclamando ou de mau humor não iria mudar nada (algumas semanas depois, após uns quatro dias seguidos de chuva, eu tentava me convencer de que era assim que eu deveria pensar!).
Eu valorizava muito estar ali, e valorizava mais ainda estar caminhando com alguém, especialmente depois da “peregrinação antes da peregrinação”. Me sentia mais forte, capaz de tudo. E até o desafio da chuva ficou mais leve. Eu não conseguia parar de pensar em como era bom e incrível estar começando o Caminho.
Foram 6 km de subida economizados para o grande dia de amanhã (da travessia da Serra dos Pirineus). Nesse primeiro momento, esses 6 km pareceram bastante. Chegamos rápido, em 1h30 estávamos em Hunto, completamente encharcados. Na verdade, quem estava encharcada era eu, que não tinha um tênis ou calças impermeáveis. Além disso, minha capa de chuva era bem precária, não sendo suficiente para cobrir a mochila (que eu cobriria com um saco de lixo) e eu. Ainda no trem, Stefan me deu um poncho, meio descartável, mas que quebraria o galho e seria mais fácil do que por a minha capa e o saco de lixo. No fim funcionou tão bem que acabei usando-o praticamente o caminho inteiro.
Chegando na pousada em Hunto, encontramos na um casal de pouco mais de 50 anos, aposentados. Estavam caminhando desde Le Pui, na França. Já tinham caminhado um mês e agora estavam na metade do caminho. Impressionante!
Ficamos em um quarto que cabiam seis pessoas, com duas camas, dois beliches e um banheiro. Stefan e eu estávamos sozinhos no início, mas logo chegaram dois Finlandêses, também mais velhos, de uns 50 e poucos - ou tantos - anos (ok, minha noção sobre as idades das pessoas não é super boa).
Quase na hora de jantar, chega um casal de bicicleta, encharcados, exaustos e muito agradecidos por estarem ali. O jovem casal está produzindo um documentário sobre o Caminho. Subiram de bicicleta a Serra dos Pirineus, mas o mau tempo os castigou bastante. Muita chuva, muito vento, muito frio. Impossível de pedalar, ainda mais com uma bicicleta pesada devido aos equipamentos de filmagem. Lá em cima da Serra, os dois conseguiram uma carona e decidiram voltar.
A janta foi um verdadeiro banquete, com vinho, sopa, pão, frango, batatas, queijo, geléia e até muffin de sobremesa. Mais tarde eu iria ver que esse é o padrão dos ‘menus do peregrino’. Pode parecer um banquete, mas não parece ‘comida de verdade’. O Finlandês foi o primeiro a tirar uma foto do pessoal na mesa. É engraçado, pois esses dois se tornaram os tiradores oficiais de foto do Caminho, sempre aparecendo nas situações mais inusitadas, algumas vezes um tanto quanto inconvenientes e engraçados.
Enquanto jantávamos, eu pensava na loucura que era estar ali. Feliz por já ter começado a caminhar, mal conseguindo esperar a hora de caminhar no dia seguinte e cruzar a Serra dos Pirineus.